22 fevereiro 2006

Mas eu não iria mentir-te, pois não ?


L. entrou no avião, aguentou os minutos de sempre no corredor, de cartão de embarque na mão, tirou a sacola das costas, cuidou que as calças de ganga não mostrassem demasiado quando se esticou e a colocou na bagageira. Tirou o elástico do cabelo.

Pensou no quadro que deixara quase acabado no cavalete, um cão negro no meio de uma praça vazia, numa tarde de sol, deixara que as cores alaranjadas dominassem o centro do quadro, os tons prateados dos edifícios que se afastavam no horizonte reflectiam a cidade e os movimentos, não longe daquela praça desprovida do verde de arbustos ou árvores. Quase a terminar hesitou em colocar um navio de um imaginario porto adjacente reflectido num edifício. Resolveu colocar a sombra de um avião enorme que descia sobre a cidade inundando de negro a praça. Faltava só o reflexo dessa máquina monumental nos vidros dos edifícios.

Duas horas depois lembrava a promessa feita a E. : não pinto mais quadros autobiográficos, auto retratos ou caras distorcidas da genealogia familiar, a partir de agora afasto o meus medos e intimidades, rancores e desprazeres, levo a minha imaginação para cidades fantásticas e retrato gente que nunca existiu, coisas que nunca serão verdes azuis ou amarelas, mas sim de uma síntese da palete, livre.

O intercomunicador nesse momento rugiu um grito de alarme: posições de emergência para uma aterragem forçada. L. olhou pela janela, a aeronave descia abruptamente sobre uma cidade de edifícios prateados, e no meio do pânico conseguiu ver a imagem do avião reflectida num edifíco espelhado que dava para uma praça deserta.

20 fevereiro 2006

Pode-se dizer sem exagero que nunca a civilização humana esteve ameaçada por tantos perigos quanto hoje


Por Uma Arte Revolucionária Independente
André Breton e Diego Rivera 1938 (*)


(*) Com Leon Trotsky, no México

17 fevereiro 2006

Lucky man


He had white horses
And ladies by the score
All dressed in satin
And waiting by the door
Oh, what a lucky man he was
White lace and feathers
They made up his bed
A gold covered mattress
On which he was laid
Oh, what a lucky man he was
He went to fight wars
For his country and his king
Of his honor and his glory
The people would sing:
Oh, what a lucky man he was
A bullet had found him
His blood ran as he cried
No money could save him
So he laid down and he died
Oh, what a lucky man he was


(Emerson, Lake & Palmer)

15 fevereiro 2006

Sem pinga de sangue

J. estacionou o carro sob o olhar atento do homem escanzelado com um jornal enrolado na mão.

Ficou ali mais 3 minutos a pensar na posição fantástica que lhe ofereceram na empresa para dois dias depois lha retirarem sob o pretexto de interesses accionistas divergentes.

Ficou ali mais 3 minutos a pensar em A. e no olhar distante que ela lhe oferecera uma hora antes e na ausência de palavras que lhe dissera o que já antecipara, remoendo as recusas anteriores e tentando amortecer uma realidade que antecedera a brutal consciência de que algo morre e não volta.

Ficou ali mais 3 minutos a tentar conter a raiva. Pensou no espelho e pareceu-lhe melhor parti-lo. Pensou no fato e resolveu rasgá-lo puxando do canivete dormente no porta luvas. Saiu do carro, abriu o porta bagagem e retirou a carabina de caça. Olhou o homem escanzelado que sorria: "tá bom chefe, pode deixar".
Apontou a arma ao peito do miserável e disparou. Não percebeu porque continuava o homem a sorrir, olhando com graça para o buraco fumegante que lhe ornava agora o lugar onde tivera um dia o coração. J. sentiu-se muito fraco e caiu.

O homem escanzelado não deixou de sorrir, enquanto vestia a roupa de J., e calmamente entrava no carro, compunha o cabelo no espelho retrovisor e retomava a existência que um dia fora de J.

13 fevereiro 2006

So há isto, mais nada

Sempre que M. visitava o avô apanhava o eléctrico para o Arco Cego, com cadeiras de palhinha, descia no fim da linha e caminhava 200 metros até a entrada imponente da casa, de onde sobressaiam duas mãos de ferro que ele fazia sempre questão em cumprimentar antes de puxar uma delas bem atrás e deixar a ressonância do embate avisar da chegada.

Olhava na entrada o galeão espanhol de madeira encafuado num vidro, enquanto esperava que o J. fosse chamar o avô. Depois iam para a sala que ele temia, muito escura com sofás de orelhas enormes onde se afundava e esperava as perguntas. Pouco depois, invariavelmente, o avô iria adormecer com o copo de cognac na mão.

Ele então esperava uns minutos só com o ruido do grande relógio de parede a tiqueticar, olhando mais para diante e entrevendo a marquise onde repousava numa campânula um requeijão enorme, que nunca se atreveria a comer, uma colher de prata e uma chávena com tons azulados e com barcos. Sentia-se à espera, não sabia porquê, mas estava à espera. Levantava-se e olhava mais de perto o mapa mundo amarelado no meio dos livros de lombadas avermelhadas a lembrar a cor do cognac do avô.

Nesse dia, tão igual, adormeceu também no sofá, entre o ressoar do relógio e imagens confusas daquela sala cheia de gente, noutro dia, encostado ao ombro da mãe, com o pai de pé a discursar, de sorriso assestado e cabelo com um caracol caído para a frente.

Acordou com o toque das 4 da tarde, profundo e que o deixou inquieto. Porque se fica inquieto de repente, avô?

Não houve resposta, mas viu um papel nas mãos cruzadas do homem que ele visitava todas as 3ª feiras. Levantou-se, falou mais alto, mas não teve outra resposta que não o esvoaçar do papel para o chão.

Olhou as mãos brancas do avô, tocou-as ao de leve, sentiu frio e leu:

"Só há isto. Acaba assim, e não há mais nada"

09 fevereiro 2006

Desculpe, pode ajudar-me a tomar uma decisão?


V. tinha saído do edifício há poucos minutos, e caminhava agora pela Avenida da Liberdade com as mãos metidas nas luvas azuis compradas na rue de st.Dennis, por 5 euros. Na esquina seguinte comprou a ideia de sair do emprego e das obrigações, do caminho diário regular, parou para olhar a montra da agência de viagens e apontou a luva para o papel que dizia Quénia, ilustrado com rinocerontes e taças de champagne. Para aqui, vou para aqui, pensou. Desviou o olhar para a porta, e caminhou disposto à loucura da decisão.

Quase a entrar, quase, hesitou. Olhou de novo a avenida e o anúncio da Lanidor, viu um vulto de sobretudo negro, passaram carros, rugiu um aeroplano, viu o azul de um céu entre prédios, uma espécie de torpor tomou conta de si. Via agora a M. a chegar a casa, a deixar as chaves em cima da secretária, a tirar o casaco rosa e a sentar-se no jardim de inverno, a ler Emily Dickinson armada de lápis nº3. Via agora M. a colocar Lou na cadeira pequena em frente a si, silenciosa como sempre, nenhum gesto, nenhuma palavra, a cabeça em pêndulo constante.

Viu sair da agência uma mulher com cabelos ondulados e boina castanha, um casaco escuro e sobrancelhas finas e cuidadas.

Resolveu não entrar, adiar a escolha da viagem. Seguiu-a.

01 fevereiro 2006

Do Not Go Gentle Into That Good Night


Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.
Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.
Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.
Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.
Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.
And you, my father, there on that sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

Dylan Thomas (1914-1953)