22 fevereiro 2006

Mas eu não iria mentir-te, pois não ?


L. entrou no avião, aguentou os minutos de sempre no corredor, de cartão de embarque na mão, tirou a sacola das costas, cuidou que as calças de ganga não mostrassem demasiado quando se esticou e a colocou na bagageira. Tirou o elástico do cabelo.

Pensou no quadro que deixara quase acabado no cavalete, um cão negro no meio de uma praça vazia, numa tarde de sol, deixara que as cores alaranjadas dominassem o centro do quadro, os tons prateados dos edifícios que se afastavam no horizonte reflectiam a cidade e os movimentos, não longe daquela praça desprovida do verde de arbustos ou árvores. Quase a terminar hesitou em colocar um navio de um imaginario porto adjacente reflectido num edifício. Resolveu colocar a sombra de um avião enorme que descia sobre a cidade inundando de negro a praça. Faltava só o reflexo dessa máquina monumental nos vidros dos edifícios.

Duas horas depois lembrava a promessa feita a E. : não pinto mais quadros autobiográficos, auto retratos ou caras distorcidas da genealogia familiar, a partir de agora afasto o meus medos e intimidades, rancores e desprazeres, levo a minha imaginação para cidades fantásticas e retrato gente que nunca existiu, coisas que nunca serão verdes azuis ou amarelas, mas sim de uma síntese da palete, livre.

O intercomunicador nesse momento rugiu um grito de alarme: posições de emergência para uma aterragem forçada. L. olhou pela janela, a aeronave descia abruptamente sobre uma cidade de edifícios prateados, e no meio do pânico conseguiu ver a imagem do avião reflectida num edifíco espelhado que dava para uma praça deserta.

4 comentários:

K. disse...

Coincidências ou talvez não... ;)

jp(JoanaPestana) disse...

a antecipação da morte espelhada no ultimo quadro
teve sorte, sem querer soube quando era

Elipse disse...

Não gostava de ser assim visionária.

jp(JoanaPestana) disse...

não sei se não seria diferente a forma como se vê a vida