31 março 2006

At the Village Vanguard

Traz um vestido branco com brilhos salteados nas mangas, e entra com um leve rasto sonoro dos saltos no pequeno palco onde se colocaram já, há poucos minutos, um contrabaixista com um lenço branco na mão e uma camisa azul escura donde pende uma gravata roxa, um homem de boné e óculos escuros com uma guitarra e um jovem louro de t-shirt branca na bateria. Ela, senta-se ao piano, eu tenho tempo, guardei o meu tempo e desviei numa batota infame as contas de cash flow para uma reserva de coisas a retirar da vida um dia. Deixo o fumo cinzento invadir-me, não temo a proibição patética, a loja de horrores de reguladores e legisladores, o copo está baço e rodeado de angústias em diluição acelerada. Tenho saudades de Roland Kirk e da sua lágrima em Cascais, de Charles LLyod no Estoril, de Dave Holland e Jarrett no Coliseu. E sei como ela deixou o lugar a louras agora idolatradas.



Ela faz do tempo uma coisa ridícula, e começa a dizer, enquanto os dedos sobrevoam o piano:

You won’t forget me, though you may try
I’m part of memories, too wonderful to die
And it will happen, that now and then
You’ll fall to wonderin’ if we shouldn’t have tried

You won’t forget me, on nights like this.
The moon will cast on you the shadow of my kiss
No matter where you are with whom you are
You’ll think of me, you won’t forget me

Just wait and see, you won’t forget me



(homenagem tardia a Shirley Horn que cantou a melhor canção de amor de todos os tempos com Miles Davis, poucos tempo antes de Miles morrer, dez anos antes dela.)

27 março 2006

Luger Parabellum

A minha mãe sentava-se à mesa antes de qualquer de nós. A minhã irmã dizia que a antecipação do ritual era o que mais lhe agradava. Eu estava até ao ultimo minuto agarrado ao gravador apanhando as últimas notas da soul da Discoteca da manhã de sábado, apanhando as tiradas de Shalamar e de Kid Creole, que me faziam de novo sonhar com a Mariana e o seu cabelo pelas costas que agitava na roda da saia. A night to remember.

Servia-se o bacalhau com natas, um pouco de Dão Terras Altas a acompanhar, a sala tinha uma mesa de madeira com pés que rematavam em espiral de mogno. Ao fundo da sala uma vitrina com armas de caça, ao canto uma Luger desasada do espírito da caça, invocando outras noites longas. Antes da primeira garfada a minha mãe levantava-se e colocava a Tosca no gira-discos, para que não houvesse a mais pequena hipótese de algum de nós dizer algo sobre a comida, a noite anterior, a noite seguinte ou mesmo os anos que nos separavam do tempo em que se ria naquela sala.

Não sei porque me lembro agora da mesa, nem porque razão aquilo que eu não via nesses dias é agora tão claro.

Talvez porque a sala é agora agitada por fantasmas de gente que já lá não habita ou não habita em lado nenhum, ou mesmo porque havia um disparo que soara havia já 5 anos mas que não havia maneira de sair daquela mesa.

13 março 2006

Que se passou afinal?

Não foi por acaso que J. passou por ali outra vez, e ainda outra vez.

Ao pensar no que o futuro lhe vai trazer, J., que nada sabe e tudo sabe, pensa outra e outra vez no passado que foi o que ele foi, ou pelo menos o que ele pensa que foi.

J., que nada sabe e tudo sabe, não tem a certeza que possa ser presidente da General Motors, ou mesmo capataz certificado, responsável por vigiar passeantes enlaçados no parque fronteiro ao Palácio do Presidente.

J., que nada sabe e tudo sabe, foi há tempos uma criança que era levada ao aeroporto para recolher fotos que o pai, armado de Polaroid, disparava contra a sebe, encavalitados ambos num poste.

J. teve mãe que o fotografou no berço e sorriu para o pai iluminado de certezas, pelo menos ele acha que as fotos são dele. Mas que pessoa era ele então ? e depois quando beijou a empregada de verão na casa da praia? e depois quando foi fotografado num café, com a camisola azul com vivos verdes que a namorada enfermeira lhe costurara entre turnos? e depois quando largou tudo para ir para a cidade do Cabo porque conhecera C. num campo de férias em Singapura?

Que pessoa era ele? que se passou então afinal, pensa J., agora que a sua vida não parece ser parte desse conjunto de memórias assustadoras?

Que diferença faz pensar no futuro, quando ainda pouco ou nada se sabe sobre o passado.

O que se passou afinal ?

12 março 2006

Todas as almas

Conta-se que o vento leva a memória para longe naqueles dias, quando as mãos pousam na roda do leme e olham para todas as velas no horizonte de bruma. Todas as almas sabem como é deslizar em silêncio, com asas que não tremem nem murmuram mais do que o vento, mesmo que uma atrapalhada recordação teime em fazer frente ao mar.

Ouve-se o chapinhar do barco nas ondas, as gaivotas repousam numa onda que partiu de longe e as eleva e faz desaparecer. O prazer aumenta e os olhos não têm medida, as bolachas repousam na popa com as luvas, com o sol, e apetece ir sempre para lá do que não se sabe, adiar mais o momento de inverter o rumo.

O veleiro dá um impulso a todas as almas.

03 março 2006

Close your eyes



Quando der a meia noite
e os olhos se fecharem
Começa então a roda livre
A hora das crianças brincarem.

02 março 2006

A lágrima ocupa sempre um espaço perdido

Quando íamos jantar a casa do meu pai tínhamos quase sempre uma ementa fixa, resultado do seu temperamento dito pragmático e eficiente. Chegava sempre tarde mas gabava-se de nos pôr a mesa e a comida em poucos minutos e de tudo estar pronto quando tocávamos a campainha.

O meu pai era um homem que gostava de falar das coisas do mundo enquanto jantava, resumia a situação em 30 minutos, mas não falava dele. Sentíamos por vezes que a sua vida era oscilante entre os grandes projectos e a resignação ao trovejar dos dias, como dizia. Sentia eu, que o admirava, que havia naqueles encontros uma emoção contida e uma nunca resolvida angústia de nos ter longe.
Sempre aparentou um ar juvenil, na moda de vestir, na leveza dos gestos e no encanto com que aspirava o ar do charuto enquanto nos lembrava dos episódios de infância ou da adolescência. Eu dizia, ah! sim, claro que me lembro! mas o meu irmão, que herdara dele o ar sisudo mas ostentava os traços bonitos que já lhe escapavam, confessava ingenuamente que "não me lembro nada disso".

Um dia acordei, e olhei numa janela a neve de Londres, perto de Marble Arch. A minha mãe alugara aquele apartamento por uns dias, a pretexto de uns saldos em Oxford Street. O telefone soou depois e disse-me que durante a noite o meu pai morrera de "insuficiência respiratória", uma expressão que achei completamente irrelevante face à inevitabilidade do acontecimento. Larguei a correr sózinha para o metro, sem uma única lágrima. Sentei-me num banco e olhei uma a uma as pessoas que o acaso reunira naquele espaço, sem nada para dizerem umas às outras, orgulhosas da sua indiferença face ao mundo.

Queria tanto lembrar-me da cara dele, dos gestos mais familiares, mas não, só via aqueles rostos desconhecidos.

De repente senti a sua ausência do mundo, e o peso dos dias simples e despreocupados, porque seguros, tornaram-se insuportáveis. Baixei os olhos finalmente.