30 janeiro 2006

E se um dia eu te dissesse que os olhos não sustentam a alma?

Acendo mais um cigarro e olho para ela outra vez. As mãos volteiam furiosas, expele razões, argumenta com os lábios a tremer, o cabelo parece descair mais sobre a pele seca e tem um olhar hesitante. Não fala de mim, mas olha para mim. Não me conhece, mas olha-me entre outros desvairados olhares, está a quatro ou cinco metros de mim, fala para quem não vejo, de costas com um blusão preto com marcas propositadamente feitas na pele. Estou encostado ao bar contigo, pego no copo e encosto a minha face na tua face, sorrio e passo a mão pelos lábios. Tento conversar ao teu ouvido, abrindo caminho pelo ruido do bar, passo a lingua pelo teu pescoço, enquanto olho para ela. Retribui o olhar de novo, agora falando ao que me parece mais baixo. Imagino a cena de discussão a amenizar, mas subitamente o blusão mexe-se e vira-se de um ângulo que me permite ver-lhe a face. Levanta-se e caminha para nós, passa olhando de soslaio para ti, sorri e reconheço G. Abraçamo-nos.

29 janeiro 2006

Dubious Desiderata

Eram 7.40h quando L. arrumou o carro no parque. Entrou no elevador para o escritório, sentindo o cheiro confuso dos outros que partilhavam a viagem até ao 15º piso, lendo nos seus olhos baixos o embaraço de sempre . Era o momento mais difícil do dia, o odor terrível que a mistura de perfumes e desodorizantes e after-shaves e cremes produzia.

Era um dia desejado profundamente por ela, garantira um novo emprego que procurara durante muitos meses, trazia no bolso a carta de demissão, mesmo sabendo que não iria ser olhada com simpatia por ninguém.
Sentia-se inquieta, mas sabia que não voltaria a ter de subir aquele elevador cheio de gente, e voltar a descê-lo com outros, e outros cheiros . Por alturas do 7º piso começou a sentir-se mais leve, o que a esperava seria rápido, talvez as antipatias gerassem a sugestão de partida imediata. Pelo 11º piso achava-se feliz, de novo.

Abriu discretamente a mala. T., o seu novo namorado, oferecera-lhe uma essência misteriosa cuja origem desconhecia, mas que ele garantia ser absolutamente eficaz contra a mistura de odores. Abriu o frasquinho e verteu umas gotas na mão. Leu o nome em letras pequeninas: Dubious Desiderata.

"Mas não abras nunca com o elevador em andamento", dissera na véspera. Ela sorrira com a laracha.

Às 8.12h chegaram duas ambulâncias, um carro de polícia, um helicópero. O perímetro do edifíco foi fechado. No 15º andar as portas do elevador estavam abertas e pessoas atónitas olhavam para um amontoado de roupas, calçado, malas e objectos pessoais. Mas nenhum sinal dos habituais ocupantes.

No ar uma pequena nuvem exalando cheiro intenso, agradável mas estranho, dissipava-se. Muito lentamente.

26 janeiro 2006

Loiras Trágicas (I) : Tate Gallery




Sharon Tate - 1943- 1969

Uma das loiras trágicas do cinema.

Grávida de Roman Polanski, com quem era casada, foi assassinada por Charles Manson, 2 anos depois do magnífico "Fearless Vampire Killers" ou "Por favor não me mordam o pescoço". Não ter este filme de vampiros, uma espécie de comédia inquietante e negra, é uma falha numa DVDteca que se preze.

O oceano não tem só barcos à vela, há monstros no mar, como a nova barracuda da Doca de Belém ou a traiçoeira e minúscula piranha, sua parasita.

20 janeiro 2006

Joy and Pain



The gift of beauty, the expressiveness of things, the world as aesthetic phenomenon, become the proliferation of the image.


André Kertész (U.S.n.Hungria, 1894-1985)

19 janeiro 2006

Livros que não se lêem


Há livros que não se lêem, apenas se folheiam.

São bonitos, cheiram bem, têm cores, batem leve, levemente, como quem chama por nós. E nós, feitos distraídos, não respondemos nada, a não ser, já vou, já vou.

Como fazemos com as pessoas de quem gostamos, mas de quem não sabemos gostar. Um dia partem, e não adianta ir atrás.



( a propósito de um post do Katraponga)

Buganvilia

La noche anticipa
Y de pronto arde en el crepúsculo,
La pirotecnia de la buganvilia.



(contributo ao post da elipse)

15 janeiro 2006

Venha por este lado, por favor

D. saiu do táxi, a rua estava cheia de gente de domingo, o museu estava iluminado por um céu cinzento, e ela podia sentir a electricidade no ar. Entrou apressadamente, comprou o bilhete, colocou os auscultadores do novo Ipod e começou a visita.

Sinto o teu olhar sobre os objectos expostos, como se aqui estivesses e eu pudesse estender a mão, rodeias as estatuetas e inclinas ligeiramente a cabeça, como se eu pudesse também ler.

D. andou errante pelas salas, agora quase vazias pelo aproximar do fim do dia, não conseguia fixar nada que a impedisse de pensar nele, a mão tocava os objectos, quase eléctricos, a humidade do cabelo, mãos , pele. Dizia para si, enquanto ouvia a guitarra de Bill Frisell, que não queria sair mais dali. O museu é um conjunto de objectos estáticos, imutáveis. Assim seria ela a partir daquele momento.

Vejo a tua imagem reflectida no espelho das telas protegidas, cheiro o teu cabelo, caem gotas de água pelas tuas pálpebras, guardo a tua mão no meu bolso.

D. sentou-se num canto, numa das cadeiras baixas de vigilante, fechou o olhos, deixou que os acordes da guitarra rasgassem o coração enquanto ele ardia, subtilmente já sem corpo e ainda presente. Como era possível sentir ainda a mão dele limpar as lágrimas?

Chove chuva


Chove Chuva
constant is the rain
Chove Chuva
endless is the pain
Chove Chove Chove Chuva

(Thievery Corporation - Chove Chuva
Sergio Mendes & Brazil '66)

09 janeiro 2006

That's where it is


Is it in her eyes ? (No no you'll be deceived)
Is it in her sighs ? (No no she'll make believe)
If you wanna know if she loves you so
It's in her kiss (That's where it is)

Is it in her face ? (No no that's just her charms)
In her warm embrace ? (No no that's just her arms)
If you wanna know if she loves you so
It's in her kiss (That's where it is)

07 janeiro 2006

Fantasia dos Infelizes


Remou agora mais depressa, guiado pela luz amarela que guiava os músculos dos braços, deixando para trás lágrimas de suor e desespero; uma e outra, as pás dos remos mergulhavam descompasssadas na água negra. Os pés rasgados encontravam os pregos do fundo do bote e o sangue misturava-se com a água salgada e os restos de roupa de A. caída no fundo.

Mais uma remada, um salto das pás numa rocha e o impacto na areia levado pela onda. G. deixou-se cair na areia suja, por momentos, e desatou a correr até ao farol onde a luz amarela parecia chamá-lo. Entrou.


Subiu a escada de ferro, e sentiu as vozes que se tornavam nitidas enquanto o compasso do seu coração enlouquecia. Aproximou-se de uma porta fechada com maçaneta redonda, que lhe pareceu familiar, parou antes de entrar.

A madeira da porta , o chão escuro, um ruido que lhe pareceu de uma chaleira de chá, mais vozes que falavam baixo e com uma lentidão que parecia dignidade sentida. Falavam como se num lamento contínuo mas seguro esperassem que alguem abrisse aquela porta, os segundos pareciam não passar, a porta entreabriu-se, o odor fétido de água suja invadiu o espaço. Entrou

A sensação de dejavu invadiu-o de forma assustadora, demorou mais alguns segundos a perceber que eram os seus três amigos desaparecidos há sete anos no mar, quando velejavam juntos.

Recordou-se das notícias e da especulação acerca de si e do seu papel na ajuda que lhes teria dado quando a tempestade quase destruiu o veleiro e os lançou borda fora. G. tinha-se salvo agarrado ao leme.

Aproximaram-se.
Vem G. , estás salvo, agora vives aqui. Para sempre.





05 janeiro 2006

O Barquinho na Volvo Ocean Race - Cape Town -- > Melbourne

A Alameda prefere o Pirata das Caraíbas, (hoje apenas a 2 milhas do leader ABN Amro), que promove um filme em vez de um banco.

E enquanto o Brasil 1 regressou à costa para reparações, pode cantar-se O barquinho com Elis Regina e Toots Thielemans:

Dia de luz festa de sol
e o barquinho a deslizar no macio azul do mar
tudo é verão o amor se faz
num barquinho pelo mar que desliza sem parar
sem intenção nossa canção vai saindo desse mar
e o sol beija o barco e luz dias tão azuis


04 janeiro 2006

Por indicação celestial escolhi hoje este despojo, e como habitualmente não avisei que ia estar na sala branca, para provocar a dor que é só minha



Dois minutos antes olhara a manga do casaco, sacudira o pó de açúcar que ficara do croissant e avançara pela sala branca cheia de gente ansiosa por a ouvir. Viu a face dele e os lábios brilhantes que evitara debotar, olhou com dificuldade a luz intensa que lembrava o poder dos dias em que estamos numa praça, numa tarde pelas 4, sem outro ruído que não o das folhas do outono, misturadas com o vento leve, e olhamos os canteiros e com um prazer estranho pensamos em quem os colocou ali. Porquê ali e naquele dia ?

Avançou pela sala e no momento em que se ia sentar pareceu-lhe ver outro sorriso ao mesmo tempo que os papéis se soltavam da mão e se espalhavam pela mesa e pelo chão, e a mesma manga do casaco parecia voar perdida, sem nada poder fazer, rolando o corpo sobre si, envolto numa dor que seria a sua última dor. Ninguém mais na terra seria como ela.


(foto: Helmut Newton)

03 janeiro 2006

Alguns, achando bárbaro o espectáculo, prefeririam (os delicados) morrer.



Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


(Os ombros suportam o Mundo - Carlos Drummond de Andrade)