27 setembro 2005

Auto retrato em estação de serviço (III)

Não encontro o CM, já estive no jardim. Talvez esteja com a Vera, aquela miuda tem olhos verdes que me assustam e não gosto que esteja sempre com o CM. Sempre que o meu marido vai para fora encontro-os de joelhos a olhar para uma estranha construção que fizeram no jardim, parece um automóvel azul, o nosso, numa estrada de asfalto e á frente um morro com imbondeiros cheios de frutos pretos que parecem ratos com a cauda pendurada dos ramos.

O CM move um pouco o automóvel e ela põe-lhe o braço por cima, dá-lhe um beijo na face, e depois sopra-lhe os caracóis, e diz-lhe qualquer coisa que me parece "falta pouco" ou "só mais um pouco", não tenho a certeza.

25 setembro 2005

Jardim do Campo Grande


Quando ainda eras a minha pequena, levava-te nas manhãs de domingo ao Campo Grande. Saias do carro, ainda ensonada e com as tuas bochechas um pouco caídas, os olhos deconfiados a olhar para cima. A olhar de soslaio para mim.
Mas davas-me ainda a mão, atravessávamos aquela pequena ponte de pedra guardada por uns leões de pedra e eu alugava um barquinho a remos. Aí os teus olhos mudavam de tom, como sempre acontecia se acaso alguma coisa feliz te passava pela mente, ou ainda se uma nuvem que escondesse o sol de repente se afastasse. Deixavas cair a mão e eu pegava em ti para te colocar no banco pequeno de popa. Depois eu via o teu sorriso, prometia um gelado e achava que era impossível que o tempo te fizesse crescer. Mas, apesar de eu acreditar em fadas, não houve maneira de manter o pacto que fiz com elas.

Mas sobram-me os teus olhos iguais e o teu ar feliz quando falas sem parar nos teus novos amigos. E naquele muito especial. Acho que ainda és a minha pequena, embora não vás mais comigo ao jardim.




Lascia ch'io pianga mia cruda sorte,
E che sospiri la libert?
E che sospiri, e che sospiri la libert?
Lascia ch'io pianga mia cruda sorte
E che sospiri la libert?

(Haendel - Rinaldo)

23 setembro 2005

Auto retrato em estação de serviço (II)

Mãe,

Estou outra vez em Luanda, com a MA e o CM, estivemos a passear ontem pelas redondezas. O CM está cada vez mais irrequieto, ainda ontem dizia à MA que não devia deixá-lo por-se em pé lá atrás do automóvel. Ainda ontem me preocupei com isto, quando, não sei, acho que travei em frente à Corimba e o miúdo veio por aí fora.

Este tipo tem 5 anos, mas olha para mim com olhos de quem já era capaz de dizer que eu não devia fazer isto ou aquilo, não achas? e aquela coisa de já ler jornais ? Ele pensará em quê?

O tempo está húmido aqui em Luanda, mãe, escrevo-lhe para lhe dizer que parto amanhã outra vez para o Luso, vou lá tentar vender um camião daqueles que dão dinheiro.

Mas não sei o que se passa com o CM, ontem voltámos para casa e ele só dizia que tinha visto um tipo aparecer e desaparecer, com uns óculos que ele já tinha visto naquele livro que tu costumavas ler-lhe, do Salgari. Em casa esteve sempre calado, parecia o avô, por acaso sonhei com ele. Aparecia-me num jardim a dizer-me baixinho : não voltes lá outra vez, não voltes lá outra vez !

22 setembro 2005

Cowboy dreams

Love's a silver bullet that blows your world apart
I wanna be remembered as an outlaw
as the boy who stole your heart
I wanna be the guy who wears the white hat
then rides across the plain
I'm gonna be your enigmatic stranger
honey, you are looking at your Shane.

Prefab Sprout (The gunman & other stories, ouve-se aqui na Alameda)

21 setembro 2005

Comme la pluie et la neige descendent des cieux



Comme la pluie et la neige descendent des cieux
et n'y remontent pas sans avoir arrosé la terre, la rendant feconde et fertile, pour qu'elle donne la semence au semeur et le pain a manger,
ainsi doit etre la parole qui sort de ma bouche,
elle ne doit pas me revenir vide, mais faire ce que qui me plait,
et reussir ce à quoi je la destine


(JS Bach, Cantata BWV 18, interpretada pelo Ricercar Consort, e que contém a magnífica BWV106 - Actus Tragicus)

20 setembro 2005

Auto retrato em estação de serviço


(Hopper, Gas, 1940)

Podemos então finalmente olhar para a estrada e seguir o trilho dos pais que nos levavam a passear, em carros que pareciam (seriam?) grandes, não tinham cadeiras para nós, iamos ao colo da avó ou a dormitar num banco enorme.

Preparava-se a viagem, era uma viagem, a auto-estrada era um doce de meia dúzia de metros, uma brincadeira. Os estofos eram de cabedal vermelho, com gomos, não havia encosto de cabeça e o cabelo da minha mãe caia-lhe pelas costas da cadeira, saindo do lenço branco que usava em volta da cabeça, atado ao pescoço.

A minha mãe era bonita, tinha lábios vermelhos e cabelo muito preto, a pele muito branca e eu adorava encostar-me a ela e adormecer, nas festas de anos e jantares em casa de gente. A ressonância da sua voz tranquilizava-me.
O meu pai tinha o cabelo castanho todo puxado para trás e usava um bigode pequenino. Dormia com os braços cruzados e eu gostava de adormecer a olhar para ele.

As sandwiches eram embrulhadas em papel celofane e havia laranjina C. Algumas bananas também.

Parámos numa "bomba" para meter gasolina. Acordei, pus-me em pé, recebi um olhar furibundo do meu pai pelo espelho retrovisor enorme e olhei pelo vidro de trás. Pareceu-me ver um homem num carro negro, de óculos escuros e cabelo um pouco despenteado que passava depressa e virava a cabeça para mim. Olhámo-nos uns segundos e depois desapareceu. Desapareceu ele, o carro, tudo.

De repente tive a certeza que aquele homem era eu, sonhando com os mortos.

15 setembro 2005

Mas como podia eu prever?

MF saiu do Toyota Lexus preto, com jantes de 17 polegadas, e fechou a porta devagar. Levava óculos escuros Armani, alongados para a face ser contrastada e parecer mais triangular, que tirou mantendo-os presos entre os dedos e os dentes, entre o casualmente e o quase casualmente. Atravessou os poucos metros que era preciso para chegar ao Bar Onix, 17.10h da tarde no Principe Real. Lá dentro numa mesa perto do balcão estava NL, sorrindo ao de leve com ar um pouco preocupado, afastando a madeixa do cabelo grisalho da testa.
Meia-hora depois estavam despachados, o sorriso de NL mais aberto e a barbicha de MF mais arrebitada: as previsões do INE sobre o crescimento da economia portuguesa estavam por horas e estavam de acordo: não era possível falhar, era negativo e coisa para 1%. Ou mais ! - disse ainda ML ao desabotoar o colarinho da gravata, já ao volante do Lexus e acenando a NL, que o contemplava no passeio com ar superior, de perna afastada e barriga desleixada, com a madeixa outra vez ao estilo Françoise Hardy.

Dois dias depois, NL colocou a sua gravata azul escura comprada no Prada de Milão sobre uma camisa rosa de quadrados finos, Façonnable, da loja do Colombo. Seguiu de táxi para a Av. D. Carlos e mandou parar em frente ao café República. MF já estava no passeio, com a barbicha ao lado, e com borbulhas a despontar, inoportunas, como sempre que via NL ou saía com alguma funcionária da Buenos Aires.
E agora? - nem deixou NL falar. A interrogação acintosa significava que afinal o crescimento era 0,5% positivo, e queria ver o que ia dizer NL, que quase o forçara a escrever aquele artigo no JN, cheio de números e gráficos que previam tudo o que dava jeito prever, e que afinal...
Deixe-me em paz, retorquiu NL, sabe bem o que tem a fazer: escreve outro artigo dizendo porque razão o que era mau se fosse negativo ainda é pior sendo positivo. Você tem jeito para isso, afinal não foi secretário de estado?
Ciao, deixe-me ir beber em paz o meu Bacardi lemon.

14 setembro 2005

3 dias em Helsinki

Entro na Esplanade, uma álea de jardins com bancos de madeira ao longo do percurso, uma espécie de Avenida da Liberdade sem carros e em pequeno. Não sei porque se não notam os prédios, mas noto que todos os bancos estão ocupados. Um homem de capa amarela olha em frente com indiferença, uma mulher jovem come um gelado encoberta por óculos escuros, duas mulheres passeiam duas crianças em carros, uma senhora de fato escuro acena para outra que olhava distraída em volta.Ei! Trinco uma sandwich ao mesmo tempo que outros, na relva. São 12.45h e mais abaixo uma princesa: uma estátua, que dizem ser a filha do Báltico, olha despida para um horizonte de barcos, mar. Á volta circulam mulheres e homens elegantes arrastando trolleys, com pressa, naturalmente, quem tem uma mala e anda é porque tem pressa, vão para Estocolmo ou vêm de Tallin. O sol é fraco mas domina o jardim, um pombo teima em circular em volta da minha garrafa de sumo.
Podia ter ficado ali, mas de repente levantei-me, andei depressa para o hotel, antecipei a viagem num dia e saí dali.

Ver, ou sentir, que podíamos fazer parte de um cenário, mas que não é nosso, é uma vertigem perigosa. A seguir pode vir a sensação de só estarmos bem onde não estamos, ou pior, não querer voltar.

13 setembro 2005

E se de repente virmos erguer-se a senhora ?


Era uma mulher quem eu via, o vestido vermelho ondulava no ar, a face branca inexpressiva, os lábios pintados de um vermelho sanguíneo, os braços de onde saiam mangas longas esvoaçavam à medida que ela se elevava na sala enorme. Parecia voar e eu olhava incrédulo para o alto do seu voo. A música japonesa rodeava o ambiente e imobilizava os circunstantes.

Numa tarde anunciando o fim do Verão do norte, havia tristeza.

Havia tristeza nesta nova catedral,e lá bem no cimo, como numa abóboda, sem crucifixo, voava a nossa senhora.

Eu estava na secção de roupa interior no Stockmann, em Helsinki, no sábado passado, e continuei a olhar para ela enquanto me escondia na prateleira Calvin Klein.

Agnóstico, eu?

10 setembro 2005

Depressão urbana

E. está deprimida, é cultivadora da depressão urbana, fascinada pela cratividade, ironia, raiva e tristeza insanas associada ás depressões. Tufão emocional. E escreve-me:
Responde-me qualquer coisa que borde a abissal depressão. Funciono, por instinto, pelo princípio dos vasos comunicantes. Quando a maré vaza de um lado, enche no outro para que se mantenha o nível. (Podes até rir … a mim está a apetecer-me um lolol, mas estou a tentar manter a seriedade.) Acordei ontem convencida que tinha perdido a minha depressão favorita, e sobressaltei-me um pouco ao verificar que a ausência de uma depressão me deixa vazia. Estou mais recomposta hoje. Até pode ser que se prepare uma menos mansa. Mas são de cultivo, estas. Que bocejo!

06 setembro 2005

Apenas um exercício literário


Um dia alguem pôs a hipótese de eu ser “apenas um belo exercício literário”, o que me abespinhou e encantou, sem saber muito bem que sentimento mandar na volta do correio…

Acho que estava a começar a ter essa dúvida quando me ocorreu escrever que a realidade que nós fotografamos todos dias se revela melhor aos outros pela renda das palavras, que assim com pudor (e algum rubor por vezes…) fazem ver para além da expressão simplória do dia a dia. E resolvi também escrever no meio do trabalho, o que não é nada musical.

Tenho dias em que sou um tipo feliz, outros, nem tanto; faz-me feliz saber que existe alguem que leu duas vezes na minha alma para me tentar ajudar a perceber.

05 setembro 2005

Uma alma antiga


Esta é minha nova alma; ganhei também mais um pouco da tua alma, com as saudades; tão breve, é uma doce tristeza. Fico com o teu olhar,que é a tua saudade de mim, e com a tua beleza e a minha saudade de ti, que está no meu olhar.




04 setembro 2005

O ano passado


O ano passado não passou
Continua incessantemente
Em vão marco novos encontros
Todos são encontros passados.

As ruas, sempre do ano passado,
E as pessoas, também as mesmas,
Com iguais gestos e falas.
O céu tem exactamente
Sabidos tons de amanhecer,
De sol pleno, de descambar
Como no repetido ano passado.

Embora sepultos, os mortos do ano passado
Sepultam-se todos os dias
Escuto os medos, conto as libélulas
Mastigo o pão do ano passado

E será sempre assim daqui por diante
Não consigo passar
O ano passado.

(Carlos Drummond de Andrade)

01 setembro 2005

Pode perder-se alguma coisa num sonho?

Num sonho pode perder-se o coração. Um homem ameaça-me, olha para mim com olhar triste, choroso e ímpio, de quem vai mudar algo em mim; a mão entra no meu peito e rasga-me. A camisa tinge-se de vermelho e pergunto-lhe: porquê?

Afasta-se e deixa-me com a alma arrastada em lágrimas de pena.