30 agosto 2005

Onde estão os pais que nos atiraram para aqui ?


Escreve-me E. , de longe


Porto, 10 de Setembro de 2000

C,
Ando desnorteada. Do mesmo modo, quase inexplicável, que fiquei quando acabei de ler a Madame Bovary. Mesmo assim tentei explicar-te (e também a mim própria) porquê: tantas e tais consequências por uma mera Ema (na verdade sublime nos seus sentimentos por mais inanes que fossem). Ou de como, à semelhança de todas as guerras santas, como essa que recomeça de novo entre Israel e a Palestina, fiéis e alheadas pequenas intenções semeiam o caos.

Não tenho na minha família algum guerreiro que conheça, ou de quem tenha sequer ouvido falar:
  • excepto talvez a minha mãe, que não será em boa verdade uma guerreira, mas mais uma resistente;

  • o meu pai, esse é uma ausência total na minha vida.


  • Tanto mais angustiante esta ausência, quanto ele sempre esteve presente. A única lembrança nítida que tenho é de ele me dar papa (Energetic com sabor a chocolate) numa termos verde àporta da minha escola (para a qual fui com dois anos) debaixo de um embondeiro. Contava-me estórias de almas-penadas ao ver passar um jornal esvoaçante. E lembro-me da película que a papa ganhava, da cor da termos, da silhueta do embondeiro, do jornal a passar esvoaçante. Mas não consigo recordar a cara dele, e quase nada da estória que era ele que inventava.

    De tempos mais recentes: tão-somente nada. Para além da memória, que tem horas, de ele me dizer enquanto o ajudava a levar uns pesados garrafões de água para o apartamento onde moram que: já não vê quase nada, cada vez estápior e raio de vida. Ele tem 77 anos C. A mola poderá estar quase já toda desenrolada e ele com certeza que a sente já lassa. Mas teve, será certo, alegrias e pelejas, tão importantes para ele como as minhas são para mim. E eu não faço a mínima ideia de quais foram (escrito em verbo de um tempo passado porque agora parece não ter nenhumas). Sinto a angústia dele e tenho medo de me chegar. Medo, imagina!, de perder o meu tempo, eu que poderei ter tanto tempo mais do que ele por suposto tem. Medo de me impacientar com o meu pai!