25 outubro 2005

Um barco à vela deve ser um assunto sério

A caminho de uma praia em frente a Maputo, 2 horas de barco a motor, lancha rápida com coletes coloridos fazendo lembrar montanhas russas, ou barcos de aluguer em Chicago mesmo em frente ao Drake Hotel onde a Princesa Diana dormiu com Al-Fayed.

C. protege M. simbolicamente, tem medo das vagas e põe o braço protector em volta dos ombros de M, que tem seis anos, seis anos preocupados com as "coisas importantes" do mundo quando olha o globo luminoso que lhe faz companhia no quarto, lá atrás do horizonte, agora uma silhueta da cidade. Na bolsa frigorífica levam camarões panados, sanduiches de fiambre e chá gelado. No saco levam um barco à vela a pilhas.

Na praia aguardam jovens com construções de madeira, o jardim em frente ao hotel tem uma piscina no meio, com água salgada, e C. põe o barco à vela a rodar. M. olha e diz-lhe que esse barco não é a sério. A fotografia de M, C, Cr e B na praia vai desfazer-se em poucos anos até esse momento sério, com outra tripulação, ser enfim a outra verdade.

24 outubro 2005

Good Morning, Mr Radio

São seis e dez na autoestrada, ao km 76 entre Faro e Tavira, há ali um vermelho escuro que começa a aparecer, mas ainda há a noite, e o sabor de luzes de groselha a pingar dos lábios. B. tem o rádio ligado para não perder o que a liga aos sentidos da euforia, do superior olhar para uma forma de vida que parece que a faz sair da rua pequena em que vive, e dos gritos da manhã enjaulada aos primeiros minutos. Da porta pequena da casa onde vive, do cheiro a respiração abafado em poucos m2, do irmão pequeno, da mãe. Dos roubos na Zara e na Parfois, para sair vistosa.

B. olha o que não quer ver, segura o volante com mais força e quer que os reflectores amarelos a façam esquecer tudo o que não quer ver.

A bella machina rola a 210 e lembra a dança dos lençois. A vida é miserável e enfeitada de gente cinzenta, mas B. olha mais além e vê qualquer coisa que a noite e o volante não deixavam ver antes, em forma de espantalho, de braços abertos e boca escancarada. Deixa-se levar mas não pode evitar que esses reflectores lhe mostrem o corpo estendido em alcatrão. O carro desliza e canta como se falasse de quem a levara a roubá-lo, desse que a deslizaria suavemente para lá da vida miserável.

Na radio Antony and the Johnstons tocam Hope There's Someone.

21 outubro 2005

The way we were (II)


Weretwins

Foto: Steve Uzzell - 2005

The way we were (I)


Werewolves, wereleopards, werelions

(Nastassia Kinsky, Cat People - 1982)

20 outubro 2005

Kaleidoscope world

Muita da luz que vem da janela está na minha memória. Mesmo que as horas sejam as horas pequenas da madrugada, não consigo querer dormir, mesmo que as cidades e as luzes que passaram a correr como numa série de fotografias aceleradas, em tantas cidades do mundo, teimem em querer adormecer. Não na minha memória reconstruida todos os dias em Lisboa.

19 outubro 2005

Passeio em Richmond, onde Mr Babell me cedeu umas suites das suas mais celebradas lições reunidas e adaptadas para cravo


(o facto de viver em part-time no séc XVIII, coisa que muitos cépticos considerarão uma excentricidade impossível, faz com que me encontre com regular frequência com artistas que passeiam em herdades perto de Richmond, Twickenham ou mesmo na zona duvidosa das docklands. No primeiro caso, encontrei Mr.W.Babell)

17 outubro 2005

Auto retrato em estação de serviço (V - Final cut)

CM empurrou o carro azul um pouco mais e a construçao desfez-se em pó; lembrou-se, enquanto a nuvem de pó se erguia e tapava a visão da mãe preocupada, da corrida de automóveis que perdera, de como os carros apareciam de repente na curva, de como rugiam os motores, os motores Transformados em máquinas assustadoras, como tinha agora de se esconder no jardim ou debaixo da mesa em pistas de tapete persa.

No dia seguinte levantou-se, muito cansado e sujo, e viu a mãe correr para a porta de entrada, onde dois homens de chapéu olhavam para o chão embaraçados. Não foi preciso esperar muito para ver a mãe desfalecer e começar a chegar muita gente, de mãos na cabeça e a falar muito depressa. A falar muito depressa de um carro preto que batera contra o carro azul e desfizera a vida de passeios pelo aeroporto, a vida de discos no pick-up a tocar suaves canções enquanto a roupa que cheirava bem depois do banho se aconchegava ao corpo. O corpo pequeno de CM estremeceu e correu para a casa de banho onde mergulhou as lágrimas na toalha azul, debroada a seda.

Teria agora a vida toda para encontrar maneira de voltar atrás e não empurrar o carro azul contra os imbondeiros com apêndices pretos como ratos. Arrepender-se de desejar uma vingança.Demoraria tanto tempo, tanto tempo que precisaria de voltar atrás e ver um carro azul numa estação de serviço com uma mulher de lenço branco, um homem de camisa branca e uma criança que o olhava pelo vidro traseiro.

De repente teve a certeza que aquela criança era ele, sonhando com os mortos.

16 outubro 2005

IL Trionfo del Tempo e del Disinganno

Un pensiero nemico di pace
Fece il Tempo volubile, edace,
E con l’ali la falce gli diè.
Nacque un altro leggiadro pensiero,
Per negar sì rigido impero,
Ond’il Tempo più Tempo non è

(Une pensée hostile à la paix
A fait du temps un glouton avide
Et lui a donné la faux avec ses ailes
Une nouvelle et douce pensée est née
Pour contrarier un empire si inflexible
Et par elle le Temps n'est plus le Temps)

Handel - Il trionfo del Tempo e del Disinganno

12 outubro 2005

Escritor famoso (*)

Talvez seja sina. Isto é sinal, um mau sinal, ou pelos menos é sinal de que se escrevo é para não falar.Para não falar, só porque não há ninguém para falar. Ou todos os que há para falar não são os que eram necessários para ouvir o que houvera eu querido dizer.Assim, venho aqui e escrevo, escrevo que parto hoje, não falando. Toda a gente parte de todo o lado para todo o lado, e o animal que me transporta já trouxe outros que partiram para aqui. Tal como eu saio daqui cruzando-me com eles, eventualmente poderia cumprimentar um passageiro ou outro, ou mesmo interpelá-lo: veio de lá? porque vem para cá? eu vou para lá !Assim, venho aqui e escrevo, sem saber se alguem lê, apenas para não falar. Para não dizer a quem poderia não querer escutar, e assim se perder a possibilidade de eu entender, porque o que dissesse não faria ricochete e não haveria a volta das palavras de resposta que nos fazem entender porque falámos assim ou de outra forma qualquer.É sempre outro o tempo, é mesmo uma banalidade escrevê-lo. Mas em cada tempo que é outro, se olha para outro tempo cheio de momentos: parece ver-me ali infeliz, no outro tempo, naquele tempo, mas se o sentia então agora parece-me um tempo mais doce, quase infantil. Porque o outro tempo que não é o de hoje, qualquer outro tempo, é um tempo tranquilo porque resolvido.Tal como se folheia um livro que já se leu até ao fim, de que se sabem já os segredos, mas em que lemos passagens de um momento, saboreando a emoção daquelas páginas, sabendo embora o seu desenrolar e epílogo.Não há portanto tempo de momentos infelizes, da mesma forma que não há agora tempo de momentos felizes.

(*) ver aqui porque se vai do céu ao inferno e deste de volta ! (Para a P. que me trouxe de volta)

05 outubro 2005

A star should guide you my way

Auto retrato em estação de serviço (IV)

So you give to me and I give to you... true love
ºº

CA cantarolava Bing Crosby pela estrada que levava ao Luso. Tinha feito esta estrada várias vezes enquanto vibrava com as canções de Crosby, os duetos com Grace Kelly, a voz de baixo temperado de Martin, a voz que levava CA de volta aos saraus do Ateneu: Sinatra.

Levava uma camisa branca de meia manga e uns calções de caqui, estava quase a vender um Unimog à empresa de M., um filho da mãe que quase o lixara na ... bem, que interessa isso, não deixes a irritação da manhã levar-te, pensou CA, voltando ao True Love. Conduzia um studebaker, azul com capota branca, já velho, e talvez esta venda possibilitasse a troca, ainda não tinha pensado em quê, talvez... passou-lhe uma imagem estranha de um automóvel arredondado, preto, com um símbolo não menos estranho, pareciam umas argolas entrelaçadas, curioso, pensou, o CM antes de partir falou em carros com este símbolo. Arrepiou-se com a imagem dos olhos negros profundos do filho, aquele ar de solidão adulta num corpo tão pequeno, arrepiou-se com esse olhar quando lhe negara uma ida à corrida da Fortaleza. Como se planeasse uma resposta. Em troca.

Olhou os imbondeiros à beira da estrada, cheios de frutos pretos que parecem ratos com a cauda pendurada dos ramos.

03 outubro 2005

A cor dos correios é vermelha

F. deixou a carteira em cima da mesa do telefone dos correios, e ligou para Newark. Enquanto falava com B. pensava na rua onde B. vivia, com uma árvore grande onde repousava á sombra um marco de correio onde sabia que iria parar a carta de onde vinha agora toda a sua fé, de onde vinha agora toda a emoção de duas horas de uma madrugada sofrida, rasgada à custa de uma dor de ser distante.
F. pensava em B. enquanto falava com B., e onde iria para a sua vida, naquelas paragens de língua arrepanhada. F. estava dispensado do escritório da rua nova do almada, daquele escritório sombrio com alcatifa cinzenta gasta de cigarros, daquele advogado velho e sebento, daquela gente desesperada que consultava o velho, mesmo ali em frente ao tribunal, levadas pelo funcionário judicial, à sucapa.
F. pensava e via agora os cabelos de B. pretos com umas manchas amarelas, trazia a foto na carteira. Estava decidido, iria.
Sorriu quando desligou o telefone e olhou o indivíduo de cabelo curto, camisa vermelha escura e senha de espera, com postal na mão e olhar ausente. Pagou e deixou a estação de correios devagar, bebeu um café na tabacaria do lado, cruzou a gare do oriente e atravessou a rua em direcção à loja de telemóveis.

Na entrada, enquanto a porta rolante se preparava para o engolir, parou de repente: a carteira! Voltou atrás a correr, com o coração mais pequeno e aflito, sem tempo de ver um carro preto conduzido pelo homem de camisa vermelha escura, que sorria com uns lábios muito vermelhos e lhe parecia querer dizer qualquer coisa. Não teve poder sobre o tempo e a camisa encheu-se de um suspiro, a imagem de B. outra vez, agora muito vermelha, ainda viu confuso muita gente à volta.

Naqueles segundos lembrou a madrugada de ontem que traçara uma linha que afinal não o levaria a Newark.