O sol na autoestrada joga com a pala e os meus olhos, agora que é quase hora de os gestos que passam pela mente serem os de outro lugar. É sempre outro lugar, de uma distância de uma alma a outra, esta carregada de outros lugares a sonhar com o paraíso, a outra assombrada de outras estrelas. Menos, agora reduzo a velocidade porque pensei como devia ter sorrido há uns minutos atrás e me esqueci da poesia que podia estar na alma e no olhar de outro; não há maneira de trocar os olhares pelas palavras insensatas, isto é, sem sentido, latu sensu. Mais, passo pelos sinais de km, conheço já os sinais, conto de memória, adivinho a idade dos outros pelos km e vou pensando: 12 km, 17 km, 22km, 33 km, 48 km, tudo gente da minha vida. Que fazer com os kilómetros e os lugares onde não se vê ninguém, ou se vêm aqueles que são figuras de um lugar, sem tempo, apenas com os segundos de um relance? |
28 abril 2006
E os lugares que ficam atrás, pelos segundos de um relance?
25 abril 2006
Quer mudar o mundo? Mude o meu.
Quando Z. para e ajeita a saia, momentos antes de entrar no café onde vai a seguir encomendar um croissant simples e uma meia de leite, ainda não sabe que a sua vida mudou há apenas 12 minutos.
Há apenas 25 minutos, N. sentou-se no balcão da FNAC do Chiado e pediu um sumo de pêssego com melão, que entornou sobre a manga da camisa de V.
V. não conhece N., assimilou o seu olhar e reparou nas mãos finas e trémulas que faziam par perfeito com os olhos hesitantes.
N.vai em poucos segundos resumir a sua vida com Z., e depois de sentir o coração a bater com estranhas arritmias, deixar que a sua mão pouse na manga da camisa de V. e com um gesto simples afirmar que a liberdade de hoje já é a liberdade de cada ser para si. Já não só a liberdade de cada ser para os outros.
20 abril 2006
A geometria dos amantes numa casa, em África
Tamara de Lempicka (1898- 1980)
Recuperou T. de um pacote de fotografias retirado de uma partilha espúria, que lembrava uma casa, em África. Sim, ele teve uma casa em África, que um dia de 1995 olhou com o coração reduzido a um pequeno mecanismo vivo, pensando como fazer daquelas paredes um animal vivo com quem falasse nos meses que iria ali habitar.
Escolheu Tamara de Lempicka como companhia, decorou as madeiras das prateleiras arranhadas com brinquedos provenientes da rua, imaginações em metal barato de quem vivia na rua. Depois ligou um walkman a umas colunas de som minúsculas, abriu a água quente, pegou num livro de poemas velhinho de Rilke e deitou-se na banheira a tentar perceber o que o afastara de casa qualquer coisa à volta de 6.000 km
15 abril 2006
14 abril 2006
Veja aqui se a sua alma voa, se nem vale a pena desviar o olhar, se
11 abril 2006
Vê-se daqui e parece perto, não acha? Mas não está.
Era capaz de ficar, sózinho, a mexer em fotografias a preto e branco, a arrumar papéis inúteis, a contemplar a prateleira de onde algum pó rastejava dos livros, pedinchando atenção.
Era capaz de beberricar, sózinho, uma garrafa inteira de um vinho guardado para um momento delicioso e inesquecível, a pensar como gostaria de gostar dela, como gostaria de gostar de olhar a sua mão como se olha o céu azul entre suspiros irremediáveis e embaraçosos.
E sempre que chegado o momento de partir para junto dela, todo o tempo de o fazer tinha passado, reparava que consumira o tempo a querer gostar. Mas não ia.
Tudo fez, eu sei, sei. Não conseguiu, perguntei-lhe porquê. Falou vagamente de imagens que se interpunham, como portas infinitas, ou espelhos auto-reflectidos, como misturas de certezas que parecem mesmo ali.
Não parecia fazer sentido, mas sei, eu sei.
(foto: h.cartier-bresson)
10 abril 2006
Devil with a blue dress
09 abril 2006
O mundo segundo John Coltrane, que tinha, como eu, as suas coisas favoritas, embora não tenha passeado pelo Tejo com o vento a 15 nós
06 abril 2006
Comboio azul, comboio azul, comboio azul, comboio azul
Há uma felicidade escondida numa viagem vivida em movimento e em espera. Fazendo um poema público e púdico num movimento único de um encontro sonhado.
05 abril 2006
Apressadamente
D. está a olhar de uma janela, aguardando que as gotas de água que explodem contra o vidro deslizem e a deixem ver o vulto que acaba de entrar num carro branco, apressadamente como só os que têm a vida cheia sabem e podem fazer. D. veste apenas uma camisa branca longa, está descalça e os cabelos castanhos oscilam pelas costas, deixando algum brilho reflectir-se no vidro da porta da sala, que deixou entreaberta, como sempre faz, simulando a necessidade de se deslocar pela casa. Os seus ombros estão tensos e deixa a cinza de um cigarro cair, em pó que despreza e que empurra para debaixo da janela.
Agora consegue agarrar a imagem de si, focando melhor, e desculpa os sulcos que abriram caminho pelos invernos. Os olhos caem sobre os joelhos distorcidos e magros, vê livros no chão, reflectidos pelo vidro da janela. D. tenta antecipar os seus próprios movimentos, ali nos segundos que se seguirão, que depois se juntarão e serão minutos longos. Que antecipa D? como se vai mover a seguir aos poucos segundos que leva a imaginar que a camisa roda com ela, os cabelos descaem de novo sobre as costas e o olhar vai pousar em prateleiras vazias e poeirentas?
Enquanto se abandona a nada fazer, imaginando a inutilidade de qualquer gesto que faça em seguida, D. olha de novo a janela inundada, parecendo-lhe agora iluminada pelo clarear do dia, mas não consegue virar-se para a sala, deixa que a noite volte a ensombrar a rua e que a sua imagem volte a aparecer.
Até que o ciclo do tempo se vá levemente diluindo e a sua imagem seja inalcançavel por qualquer fenómeno químico, e seja apenas uma sombra que alguém recorde, alguém que um dia tenha saído apressadamente, como só os que têm a vida cheia sabem e podem fazer.