10 julho 2006

Sequela dos Tempos II

Talvez seja sina. Isto é sinal, um mau sinal, ou pelos menos é sinal de que se escrevo é para não falar. Para não falar, só porque não há ninguém para falar. Ou todos os que há para falar não são os que eram necessários para ouvir o que houvera eu querido dizer. Assim, venho aqui e escrevo, escrevo que parto hoje, não falando. Toda a gente parte de todo o lado para todo o lado, e o animal que me transporta já trouxe outros que partiram para aqui. Tal como eu saio daqui cruzando-me com eles, eventualmente poderia cumprimentar um passageiro ou outro, ou mesmo interpelá-lo: veio de lá? porque vem para cá? eu vou para lá ! Assim, venho aqui e escrevo, sem saber se alguem lê, apenas para não falar. Para não dizer a quem poderia não querer escutar, e assim se perder a possibilidade de eu entender, porque o que dissesse não faria ricochete e não haveria a volta das palavras de resposta que nos fazem entender porque falámos assim ou de outra forma qualquer. É sempre outro o tempo, é mesmo uma banalidade escrevê-lo. Mas em cada tempo que é outro, se olha para outro tempo cheio de momentos: parece ver-me ali infeliz, no outro tempo, naquele tempo, mas se o sentia então agora parece-me um tempo mais doce, quase infantil. Porque o outro tempo que não é o de hoje, qualquer outro tempo, é um tempo tranquilo porque resolvido. Tal como se folheia um livro que já se leu até ao fim, de que se sabem já os segredos, mas em que lemos passagens de um momento, saboreando a emoção daquelas páginas, sabendo embora o seu desenrolar e epílogo. Não há portanto tempo de momentos infelizes, da mesma forma que não há agora tempo de momentos felizes.
(remake: em 9 de julho de 2004)