T. recorda como as folhas do caderno voaram naquele dia de Novembro, um dia sem poesia, sem alegria nem chuva. Acabara de tocar guitarra na imensidão daquela marquise, onde repousavam lençóis da mãe.
O cabelo estava preso por ganchos negros, daqueles frisados no metal para prender melhor os capilares, havia uma mancha de sol no pescoço livre de enfeites, muito branco, onde duas pequenas manchas secas lembravam o sonho da manhã aflita, da manhã em que era preciso acordar cedo para a audiência, da noite em que o suor a despertara pelas cinco, com um olhar rápido para a frincha da persiana onde esperava ver luz.
Não havia luz, só ruidos de uma árvore que invadia a varanda com ramos longos e folhas animadas, e T. acomodou um pouco a cabeça nas grandes almofadas, gesto que repetiu de um lado para o outro da cama, irrequieta e desfeita em ansiedade. De um lado da cama apareceram dois seres pequenos que a convidaram a tocar um pouco da sua guitarra, sorrindo e parecendo convidar a um ensaio:
somos a tua audiência, a antecipação do teu momento mais difícil, vem.T. voou pela janela, agarrada às mãos daqueles pequenos seres, mostrou-lhes num voo largo o anel de fogo que envolvia as casas, sorriu ao ouvir os gatos, olharam juntos as montanhas azuladas e os campos roxos, sorriu pensando que em qualquer momento regressaria à cama e terminaria a viagem impossível. Voou ainda com o caderno e poisou-o numa pedra colorida, ouvindo um som agudo que lhe pareceu um virar de página.
Quando acordou e finalmente viu a pequena mancha de luz na persiana, suspirou aliviada, como aqueles que se libertam de um pesadelo. Procurou no caderno, onde apontara a composição para a temida audiência.
Reparou então que as folhas estavam rasgadas, nenhuma réstea da sua escrita, apenas duas manchas roxas na capa do caderno que lhe pareceram dois pequenos seres impressos.