04 janeiro 2006

Por indicação celestial escolhi hoje este despojo, e como habitualmente não avisei que ia estar na sala branca, para provocar a dor que é só minha



Dois minutos antes olhara a manga do casaco, sacudira o pó de açúcar que ficara do croissant e avançara pela sala branca cheia de gente ansiosa por a ouvir. Viu a face dele e os lábios brilhantes que evitara debotar, olhou com dificuldade a luz intensa que lembrava o poder dos dias em que estamos numa praça, numa tarde pelas 4, sem outro ruído que não o das folhas do outono, misturadas com o vento leve, e olhamos os canteiros e com um prazer estranho pensamos em quem os colocou ali. Porquê ali e naquele dia ?

Avançou pela sala e no momento em que se ia sentar pareceu-lhe ver outro sorriso ao mesmo tempo que os papéis se soltavam da mão e se espalhavam pela mesa e pelo chão, e a mesma manga do casaco parecia voar perdida, sem nada poder fazer, rolando o corpo sobre si, envolto numa dor que seria a sua última dor. Ninguém mais na terra seria como ela.


(foto: Helmut Newton)

2 comentários:

Elipse disse...

...faz doer!!!

K. disse...

Nunca mais ninguém será.